Uau! Quanto tempo sem post! Até me senti estranha. Hoje vou postar um trechinho de Contagem de Corpos - um trecho que eu gosto bastante por muitos motivos. Segue.
Atravessaram a praça e andaram alguns quarteirões até chegarem a um
pequeno prédio pintado em verde e branco. Aparentemente era novo em folha, o
que Felipe constatou ao entrar na recepção. Cadeiras ultra modernas ocupavam o
espaço dedicado aos pacientes. A secretária vestia roupa branca com um
coletinho verde, da mesma cor da pintura, por cima da blusa, e falava ao
telefone. Sorriu e sinalizou para que esperassem.
- Sim, sim, dona Mercedes, mas a senhora precisa vir o quanto antes, ou
senão... Sim, eu sei que a senhora está cuidando do seu netinho, mas aqui temos
uma área infantil e ele vai ficar bem.
Olhou para os dois e sorriu novamente, como se pedisse desculpas. Natália
sentou-se em uma das cadeiras e Felipe fez o mesmo. Notou uma bancada com
diversas revistas e quadrinhos infantis, além de vários brinquedos espalhados
dentro de um cercadinho onde duas crianças brincavam com carrinhos de bombeiro.
Natália cruzou as pernas graciosamente e olhou ao redor como se, a qualquer
momento, um monstro fosse entrar pela porta e matá-la.
- Medo de dentista? – perguntou Felipe, sorrindo sem olhar para ela
- Trauma de infância. Não tem graça fazer brincadeiras sobre medo de dentista.
É algo muito real. E muito ruim. Por isso mesmo eu passo horas cuidando dos
meus dentes, pra nunca ter que ser vítima em um massacre com aquelas canetinhas
barulhentas.
- E eu achando que você fosse durona.
Natália perdeu a chance de responder à altura quando a recepcionista os chamou
com um sorriso.
- Desejam marcar uma consulta ou orçamento? Tenho certeza que posso encaixar
vocês depois do próximo cliente
- Na verdade – disse Natália, puxando o distintivo – assunto da polícia. Mas
podemos esperar, certamente. – disse ela à recepcionista, sorrindo.
Antes que a secretária pudesse responder, a porta do consultório abriu e uma
mulher saiu acompanhada pela dentista, que sorria e afagava seu ombro.
- Dessa vez foi ruim, Cláudia, mas seu tratamento está definitivamente
melhorando. Pense só, faltam apenas três canais e depois, só alegria! – disse a
dentista.
A tal Cláudia mal conseguia sorrir, mas acenou em afirmativo para Aline e
chamou as crianças. Aline acenou em despedida e olhou para Natália.
Imediatamente parou de sorrir, mas manteve a pose profissional até o fim.
- Olha quem decidiu dar uma olhada na dentadura. Cárie, Natália? – perguntou, claramente
irônica.
- Cárie, eu? Imagine, Aline, sou muito limpinha. Quem tem cárie é meu amigo
aqui. Conheça Felipe. Ele veio da capital pra ajudar a gente em um caso aqui e
de repente teve dor de dente. Você pode dar uma olhada na dentadura dele?
- Claro, claro. Letícia, avise a próxima consulta que eu tenho um provável
cliente no consultório e posso atrasar um pouco, sim?
- Claro, doutora. Aviso sim.
Aline fez um gesto com uma das mãos e sorriu, indicando para que Natália e
Felipe entrassem no consultório. Entrou atrás deles e fechou a porta, apontando
a cadeira a Felipe, que sentou-se nela sem cerimônia.
- Acho que não tenho cárie, doutora. Deve ter sido sensibilidade ou coisa
assim.
- Isso vamos descobrir. – disse Aline, já calçando as luvas e pegando os
instrumentos. – Abra a boca e diga “ah”.
Felipe fez o que ela disse e tentava falar com a boca aberta, fazendo com que o
som saísse abafado e estranho.
- Eu cuido bem dos meus dentes. Passo fio dental e tudo.
- Mas parece que não é o suficiente. – disse a dentista, suspirando. – Você tem
duas pequenas cáries nos dentes incisivos. Posso removê-las em meia hora e sem
anestesia.
- Sem problema. Medo de dentista é algo que eu não tenho. – disse ele, olhando
para Natália e se acomodando mais na cadeira.
Natália olhou-o como se ele fosse louco, revirou os olhos e encostou-se na porta
do consultório, cruzando os braços de maneira largada. Aline reunia os
materiais com uma calma impecável. Preparou-se para começar o procedimento em
silêncio, como se o único presente além dela fosse seu paciente.
- Então, - começou Natália - ouvi dizer que você foi assaltada outro dia mesmo,
Aline. Por que não foi na delegacia preencher um boletim de ocorrência?
- Nem precisei. – respondeu Aline, já com a caneta na mão – Não foi nada de
mais, achei melhor nem fazer alarde sobre a situação. Foi um susto.
- Ainda assim, tentativa de sequestro? Você devia preencher um relatório.
Aline parou de perfurar o dente de Felipe, que fechara os olhos e estava mais
relaxado do que mulher em SPA. Olhou Natália por cima dos óculos de proteção e
suspirou.
- Não foi nada de mais, eu já disse. Foi um susto e passou. Nada de tentativa
de sequestro. Um assalto que não deu certo.
- Mas você não sabe que assassinatos estão acontecendo na cidade, sabe? – disse
Natália, sem pestanejar – E você se encaixa no perfil: morena, solteira, mora
sozinha. E pode ter sido uma vítima que se safou e única testemunha ocular. Você
pode ser peça chave nesse caso, pode salvar muita gente desse maníaco...
- Não tem maníaco nenhum! – respondeu Aline, já sem paciência – Eu ouvi sobre
essas mortes, e vocês estão fazendo desse caso uma tempestade em gota d’água.
Isso é um caso aleatório e logo vai acabar. Eu-não-sou-testemunha-coisa-nenhuma.
– disse ela, pausadamente.
- Mas, Aline... – começou Natália, aparentemente aflita.
- Olha, eu vou ser bem direta. Você é péssima no que faz, Natália. Desde o
jardim de infância, você nunca soube se impor ou responder ofensas. Isso pode
ser muito fofo quando se tem cinco anos de idade, mas não combina com uma
mulher de vinte e tantos que trabalha com a lei. Eu sei que você me considera
sua ‘inimiga’ e que nós nunca nos demos bem, mas pense bem: quem se deu bem na
vida e quem sai prendendo ladrões de galinha, hm? Acho que a resposta é bem
óbvia.
Natália revirou os olhos novamente e fez
como se não se importasse.
- Eu não te considero minha inimiga. Você jogava terra em mim e colocava coisas
e bichinhos no meu lanche quando éramos pequenas, mas são águas passadas. E eu
não saio prendendo ladrões de galinha. Eu ajudo a manter a paz e a segurança
nessa cidade...
- Paz e segurança? Você mesma acabou de dizer que há um maníaco à solta. Isso é
segurança desde quando? – retrucou Aline, já esquecida de Felipe, que abrira os
olhos e observava a cena.
- Eu já disse. Estamos caçando esse maníaco. Por isso seu paciente aí veio da
capital, pra acharmos alguma pista, sei lá. Mas tudo bem, se você não quer
ajudar, paciência. Termine de consertar a boca do sabichão, eu vou esperar lá
fora.
Saiu, então, sem dizer uma palavra, fechando a porta atrás de si, sem
esperanças sobre aquele caso.
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